Durante o ano passado, quase qualquer cidadão do mundo foi avisado de que se o aquecimento global exceder 2ºC, a humanidade entrará em terreno ‘desconhecido e perigoso’. Pode soar um pouco assustador, mas o fato é que se trata de um alerta baseado nos dados do 4º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). O limite dos 2ºC se tornou referência para campanhas de ONGs e até serviu de base para os negociadores na última Conferência do Clima em Bali, quando foram criadas as raízes para um futuro acordo climático (o chamado pós-Kyoto).
Mas agora, nos corredores do pavilhão de exposições de Poznan, onde ocorre, até sábado, mais uma rodada de negociações das Nações Unidas sobre o clima, as coisas parecem estar mudando; pelo menos do ponto de vista dos cientistas. A meta de 2ºC pode não ser suficiente para interromper os piores efeitos da mudança climática, como secas e chuvas devastadoras.
Martin Parry, chefe do Departamento de Ciências Ambientais do Imperial College (Londres), que foi o vice-presidente do grupo sobre impactos do aquecimento no IPCC, tem circulado um artigo científíco na conferência, alertando sobre os riscos de não agir agora. Entítulado “As consequências de atrasar ações sobre mudanças climáticas”, seu paper sustenta que as atuais propostas para a redução das emissões de carbono são permissivas a respeito de impactos sobre o homem e a natureza.
“Nós deveríamos estar pensando em algo como 1,5ºC ou até mesmo menos, como aumento máximo”, diz Parry. Em seu artigo, o membro do IPCC demonstra que permitir uma elevação de 2ºC na temperatura global representa, entre outras coisas, que entre 1 bilhão e 2 bilhões de pessoas sofrerão com problemas de suprimento de água. Ou haverá um incremento na extinção de anfíbios e uma drástica queda na produção de cereais.
A necessidade de se repensar qual é o grau de aquecimento que os ecossistemas poderão suportar fica mais evidente diante de novos dados científicos lançados após o relatório do IPCC. Artigos publicados em 2008 revelam que a capacidade dos oceanos em absorver gás carbonico (CO2) está caindo. Os mares são o principal sorvedouro de CO2, mas eles parecem estar saturados.
Para Martin Parry, o Planeta está mudando numa velocidade bem mais rápida do que tinham previsto os cientistas no IPCC em 2007. E isso ocorre apenas com uma elevação de 0,6ºC na temperatura do globo nos últimos 50 anos. O pesquisador afirma que 2008 pode ter sido o ano em que presenciamos a primeira crise criada pelo aquecimento global: a crise alimentar. A longa seca na Austrália, ele observa, quebrou a safra de trigo que alimenta 15% do mercado mundial de cereais.
O fim da Groelândia
O professor do Imperial College não está sozinho em alertar que o clima muda rapidamente. Em Poznan, cientistas do Instituto para Mudanças Climáticas de Potsdam apresentaram novos modelos indicando que o limite de 2ºC também pode ser muito alto para as geleiras. Isso é especialmente verdade para as camadas de gelo da Groelândia e Antártica. O doutor Bill Hare, do Potsdam Institute, revelou em seu painel “Novas revelações sobre as camadas de gelo após o relatório do IPCC”, que um aumento de 1,5ºC na temperatura global seria suficiente para derreter toda a cobertura da Groelândia. Se isso de fato acontecer, o aumento do nível dos mares deve ser maior do que aquele projetado pelo IPCC em 2007 (1 a 4 metros).
Hare reconhece que não há modelos confiavéis para se prever o impacto do derretimento das geleiras no nível dos oceanos, mas é possível afirmar que, para evitar que a elevação dos mares ultrapasse 0,5 metros até final deste século, é preciso propor reduções de emissão de gases de efeito estufa mais audaciosas do que aquelas delineadas pelo IPCC.
Neste ponto, os maiores climatologistas do mundo estão rachados. O IPCC afirmou em seu relatório que para estabilizar o aumento da temperatura do globo em algo próximo a 2ºC seria preciso ter uma redução das emissões nos países desenvolvidos entre 25% e 40% sobre os níveis de 1990 até 2020. Ainda assim, o chefe do IPCC, Rajendra Pachauri, afirma que o IPCC nunca propôs uma meta de 2ºC, foi apenas uma indicação com base científica. “Foi a União Européia que se apegou a isto”, esclarece.
Pachauri diz que no próximo relatório do IPCC, que sairá apenas em 2014, é possível que os indicativos sobre a temperatura limite sejam trazidos para um nível mais baixo. A dúvida é se isso não seria tarde demais frente ao rápido derretimento das geleiras. “Com muita franqueza, não temos base científica para afirmar isso agora (o aceleramento do derretimento das geleiras)”, pontua o chefe do IPCC. De toda forma, ele pondera, os dados contidos no 4º Relatório já são assustadores o suficiente para despertar um comportamento “avesso ao risco” nos governos que estão na Convenção do Clima.
Nas salas de negociação
Mas a falta de ação nas salas de negociação é o que preocupa os pesquisadores na conferência da ONU. Até agora o que foi colocado na mesa em Poznan é insuficiente para atender até mesmo o que o IPCC tem pedido. A indicação mais forte é da Europa, de que aceita metas de 20% em 2020, mas ainda abaixo da faixa de 25% a 40%. Além disso, o bloco briga com os países do leste europeu para cortar o consumo de carvão mineral (Leia matéria “Carvão: um beco sem saída?“).
Já o futuro presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, mandou recados informais aos delegados da Convenção do Clima que seu governo estará disposto a reduzir emissões a um ritmo para que os níveis de 2020 sejam iguais aos de 1990. É pouco, muito pouco.
Em Poznan, as delegações das pequenas ilhas (aquelas que correm maior risco de desaparecer com o aumento do nível dos mares), com o apoio do Brasil, foram as que mais vocalizaram a necessidade de se pensar em um limite menor para o aumento da temperatura do planeta. No entanto, as propostas numéricas, ou o tamanho exato das metas, só serão resolvidas em 2009, na Conferência de Copenhague. Até lá, é provável que mais evidência científica mostre o quão profunda é a crise climática.
Por isso, o chefe das negociações pelo Brasil, Luis Alberto Figueiredo Machado, do Itamaraty, defende que o acordo que se espera para o ano que vem deva ser um documento flexível para incorporar as novas descobertas científicas. “Se precisarmos um nível de ação mais elevado, que é o que parece que ocorrerá, não podemos engessar o acordo”, explica o diplomata.
Eliot Diringer, pesquisador do Pew Center on Climate Change, concorda. É melhor ter um acordo que leve a uma ação rápida por todos os países, incluindo os Estados Unidos. A dúvida é se será possível ter consenso suficiente para ter metas tão ambiciosas, inclusive para garantir que o aumento temperatura não alcance os 2ºC. “Tenho minhas dúvidas”, lamenta Diringer.
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